O Cabo da Roca é excepcional por muitas razões. Uma das menos conhecidas, resulta da sua flora muito particular, que inclui espécies que só ali existem. Verá que escritor e fotógrafo conseguem transmitir o encanto do lugar. Pedro Bingre (texto) e José Romão (fotos) | |||
Quem hoje caminha pela paisagem enrugada, desarborizada e ventosa que medeia entre a aldeia da Azóia, a três quilómetros do mar, e o cabo da Roca, vê estendida sobre o terreno uma manta de retalhos de vegetação, sem ordem aparente, sem fisionomia homogénea. Dir-se-ia uma charneca desarrumada, posta à beira das falésias atlânticas. Prados de várias gramíneas encontram-se polvilhados por tojos (Ulex sp.) e troviscos (Daphne gnidium); todo o conjunto repartido por sebes de abrunheiros (Prunus spinosa), madressilva (Lonicera peryclimenum) e silva (Rubus ulmifolius) e canavial (Arundo donax). É uma paisagem em alteração ou, melhor dizendo, nas primeiras fases da chamada sucessão ecológica: estes campos, agrícolas até há poucas décadas, estão sendo lentamente recolonizados pela vegetação nativa. Até aos anos setenta, o litoral saloio era cultivado literalmente até à beira do abismo. A população era numerosa, enquanto que a agricultura que a alimentava era incipiente, capaz de baixas produções por hectare - logo, carecia de todo o solo disponível, para obter por extensividade aquilo que não conseguia por intensividade. Aqui se cultivavam hortícolas, alguns cereais, e forragens para alimentação do gado. As propriedades, muito fragmentadas, dividiam-se entre si por muretes de pedra solta e, sobretudo, por sebes de abrunheiro e canavial. Hoje em dia, apesar das enxadas e os arados já não moldarem esta terra, as feições da paisagem evocam-nos no reticulado destas sebes que já nada separam. | |||
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Fotografias de José Romão | |||
Abandonada a agricultura, regressaram as plantas nativas, em levas progressivas, como é próprio das sucessões ecológicas. Trata-se de um interessante processo em que a composição florística e a fisionomia do coberto vegetal vai-se alterando progressivamente até atingir um clímax em que a massa vegetal é máxima para as condições locais de solo e de clima. O clímax, naturalmente, depende do habitat: nas estepes inóspitas da Sibéria, limita-se a um modesto estrato herbáceo; no cálido e pluvioso Amazonas , a uma selva com vários estratos arbóreos e arbustivo. e no caso que nos ocupa, o interior do Cabo da Roca, sabe-se que a vegetação climácica seria um bosque de sobreiros e alguns carvalhos-negrais; mas hoje, depois destes bosques haverem sido arroteados por muitos séculos, pouco ou nada resta deles senão um ou outro exemplar destas árvores. As condições ambientais, no entanto, mantêm-se, e as bolotas que os sobreviventes vão lançando hão-de, a seu tempo (muitas dezenas de anos) recolonizar o seu antigo domínio. Enquanto o não fazem, outras espécies de arbustos pioneiros, de disseminação e crescimento mais rápidos, vão-no fazendo: os tojos, as urzes (Erica sp.), os sanguinhos (Rhamnus alaternus). São as chamadas etapas pioneiras da sucessão ecológica. | |||
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Numa estreita faixa paralela às arribas, todavia, as ditas condições de solo e clima são mais específicas. O solo é mais delgado e, nalguns pontos a norte da Praia da Ursa, assenta sobre rochas calcárias (enquanto que o Cabo da Roca propriamente dito assenta sobre granitos). Muitas espécies vegetais são avessas a solos ricos em carbonatos (caso de muitos derivados de calcários), como é o caso do sobreiro; outras espécies, pelo contrário, são-lhes atreitas: é o caso de arbustos como o carrasco (Quercus coccifera). Por seu turno os ventos, muito fortes, depositam partículas de sal -a chamada salsugem- sobre as folhagens, ameaçando-as permanentemente de dessecação por difusão osmótica. Para além disso, a própria pressão mecânica eólica molda os arbustos em contornos baixos e aerodinâmicos, ditos "pulviniformes" (literalmente, "em forma de almofada"), impedindo o surgimento de um verdadeiro estrato arbóreo. Por isso os carrascos (Quercus coccifera), as sabinas-das-praias (Juniperus turbinata) e as aroeiras (Pistacia lentiscus) têm aqui formas tão impecavelmente boleadas. E se a vegetação destas arribas é já de si de baixa estatura, a sua mais notável planta é também, provavelmente, uma das mais discretas. Atende pelo nome tonitruante de Omphalodes kuzinskyanae. Não nos deixemos intimidar pela onomástica: trata-se de uma espécie inofensiva, de vida curta -um ano-, herbácea (raras vezes se alça acima de um palmo de altura). O seu nome científico, escrito num latim nada clássico, assustador à primeira audição, encerra alguma poesia. (Recordem-se que os nomes científicos são binomiais: a primeira palavra -nome genérico- designa o género, a segunda -epíteto específico- designa a espécie propriamente dita.) Omphalodes significa, em latim derivado do grego, umbigo. O botânico que primeiro descreveu o género para a ciência (Miller, durante o século XVIII), quis ver no formato invulgar do fruto a forma (sensual?) de um umbigo, quem sabe se da sua amada. Insólita ou não, o facto é que a designação foi aceite e perpetuada nas poucas dezenas de espécies do género Omphalodes que existem (das quais apenas três ocorrem em Portugal). Kuzinskyanae, palavra capaz de deslocar irremediavelmente o maxilar a qualquer disléxico, é uma derivação de Kuzinsky, apelido um botânico polaco que visitou o nosso país em companhia de Willkomm, o naturalista alemão que descobriu esta espécie em 1889. Este último nomeou a espécie em homenagem ao seu amigo e colega científico. É importante notar que qualquer semelhança comportamental de Willkomm com os naturistas germânicos da Praia do Meco é meramente conjectural. | |||
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Fotografias de José Romão | |||
O Omphalodes kuzinskyanae (que ainda não recebeu nome vernáculo português) é uma espécie rara, quer no número de indivíduos, quer na distribuição geográfica, como também nos habitats onde vive. É muito provável que venha a extinguir-se. Ocorre apenas nalgumas localidades litorais da Galiza e, em Portugal, somente numa faixa que se estende da Praia do Abano ao Cabo da Roca; ainda assim, observa-se em pouquíssimos aglomerados, cada qual com poucas dezenas de indivíduos. (Presume-se que em tempos passados, numa das épocas cíclicas de arrefecimento climático, haja ocupado toda a faixa litoral desde a estremadura portuguesa até ao noroeste ibérico.) Habita em cascalhos, rochedos e areias litorais onde haja uma acumulação (ainda que ínfima) de detritos ricos em nitratos. Esta última característica (a de preferir meios ricos em nitratos, ditos ruderalizados) é comum a toda a família das boragináceas em que se filia. Infelizmente para a causa ambientalista, o O. kuzinskyanae não é uma planta carismática, nem portentosa, nem sequer bizarra ao olhar. Há quem chegue a julgá-la feia. Mas quem conhece a sua condição, acha-a bonita porque a sabe rara: tem a beleza trágica de uma despedida. Quem a não conhece, nem é capaz de compreender que o belo é algo mais que as formas que iluminam a retina, não se há-de preocupar com a sua extinção. | |||
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(Omphalodes kuzinskyanae) Fotografias de José Romão | |||
Mas bonita, mesmo garrida, é a única espécie verdadeiramente endémica do cabo da Roca: a Armeria pseudoarmeria, também ela uma espécie dos rochedos e areias batidos pelo vento e salpicados pela salsugem. Os seus tufos de folhas largas (de até dois centímetros de largura, o que a distingue da sua vizinha A. welwitschii, de folhas com menos de quatro milímetros) coroam-se durante a Primavera com inflorescências esféricas e róseas no topo de longos caules de dois palmos, ou mais, de altura; e assim a charneca floresce em Março. O nome Armeria não significa nada senão a própria flor: é o nome latino que os romanos lhe davam. Os portugueses chamam-lhe cravo-romano, apesar de não parecer um cravo nem haver em Roma (falamos da A. pseudoarmeria, porque há inúmeras espécies do género Armeria na península itálica). O epíteto pseudoarmeria, algo desconcertante, foi-lhe dado pelo botânico escocês Murray durante o século XIX. | |||
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(Armeria pseudoarmeria) Fotografias de José Romão | |||
Este cravo-romano é verdadeiramente exclusivo da região: as populações mais setentrionais crescem nas arribas da Praia da Samarra, poucos quilómetros a Norte; as populações mais meridionais encontram-se, precisamente, neste cabo. Ao contrário do Omphalodes kuzinkyanae, as populações de cravo-romano são numerosas, embora geograficamente muitíssimo restritas. E também ao contrário daquele, é pela beleza que corre risco: quando chega a época, as suas flores são avidamente colhidas pelos turistas. | |||
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terça-feira, 19 de junho de 2007
Uma visita botânica ao Cabo da Roca
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